Solange conta que dos 7 aos 36 anos, período em que viveu na casa, ela não chegou a construir qualquer tipo de vínculo, nem amigos, nem namorado, que ‘era algo de outro mundo’. Ela diz que nunca foi à escola, nem se aproximou de vizinhos. “Namorado era coisa de outro mundo, outro planeta, eu não podia namorar”, relembra ela.Ela conta que até mesmo acesso ao telefone era proibido. “Antigamente tinha aquele telefone que discava. Ela tinha um cadeadinho que ela colocava quando ela saia. Mesmo assim, ela não garantia porque quando o telefone tocava eu ia lá e atendia, aí ela começou a tirar do fio e esconder. Ela fez uma chave no quarto dela aí ela trancava tudo quando ela saia, até a agenda de telefone”.
Solange relata que não podia sair para resolver suas coisas sozinha, sempre era acompanhada por algum familiar. “Não saía, quando eu saía eu ia com a nora, com os dois netos, com ela, mas grudada assim, como se tivesse em uma cadeia e tivesse que ter uns carcereiros atrás de mim”.
Solange conta que começou a montar quebra-cabeça quando cuidava do seu patrão que teve Alzheimer. “Eu fazia quebra-cabeça até às 3h e acordava de novo às 6h”, diz ela, um dos jogos que ela montou possuía 1.500 peças e ela levou 1 ano e nove meses para completar.
“A minha cabeça estava meio neurótica daí eu disse eu vou ter que fazer alguma terapia. Aí eu optei por quebra-cabeça, o meu primeiro foi um Homem-Aranha de 500 peças demorei uns três meses para montar”.
Liberdade
Quando comenta sobre a sua saída, Solange diz “tudo poderia ter sido diferente”, para ela a conquista da liberdade se deu em um momento em que ela não aguentava mais as humilhações das netas de sua patroa, que já estava doente.
A decisão para deixar o lar em que morou durante 30 anos de sua vida, não foi fácil. Meses antes de ir embora ela guardava um celular em bolsinha e lá se comunicava com enfermeiros, fisioterapeutas e outros empregados de sua patroa com quem desenvolveu relações de amizade.
Uma dessas pessoas era a fisioterapeuta Suely Kanigai que prestou serviços para a família onde Solange morava durante 4 meses. A fisioterapeuta conta que durante os atendimentos Solange começou a contar sua história.“A princípio eu fiquei bem assustada, eu achei até que não era possível o que estava acontecendo ali com ela, aí aos poucos eu fui vendo que tudo o que ela falava realmente era verdade e eu comecei a ter um apego por ela e eu disse que ela poderia sempre contar comigo. Ela me contou que ela tinha um celularzinho e pediu para me ligar. Todas as noites ela me ligava”, diz Suely.
Solange decidiu sair de casa no dia em uma das netas de sua patroa a acusou de estar fazendo orgia com o enfermeiro que frequentava a casa. “A neta gritou que eu estava fazendo orgia dentro do quarto. Ela disse enquanto o enfermeiro estiver aí você não volta mais. E chamou o sobrinho dela”, conta Solange.
Para a mulher aquilo foi a gota d’água, ela deixou a casa durante a madrugada com a roupa do corpo e um walkman. “Eu chorei muito, chorei até ás 3h da manhã. Eu não esperava que fosse acontecer isso. Eu imaginei qualquer coisa, menos essa cena”, disse ela.
Assim que saiu da casa, Solange dormiu na casa de uma amiga e no dia seguinte procurou Suely. Ela ficou na casa da fisioterapeuta por 1 ano. Suely conta que ficou sensibilizada ao ver o modo como Solange chegou em sua casa. “Ela estava em choque, porque eu acho que nem ela estava acreditando no que tinha acontecido, que ela tinha tomado coragem de sair de lá, mas ela estava firme”.
Sonhos
“Depois que eu sai da lá eu já falei para todo mundo que meu nome é sol que brilha que saiu das trevas. Saiu para brilhar que esses anos todos eu estava no escuro, agora eu quero só brilhar, eu acho que eu tenho esse direito”.
Ela diz que ainda quer estudar e realizar os seu sonho de tratar os dentes. “Eu estou começando a engatinhar, estou começando a viver como uma criança. Sabe quando uma criança nasce? Sai da barriga da mãe? É assim que eu me sinto. Eu saí da barriga agora, faz dois anos e nove meses”.
Hoje, Solange vive em Diadema com o namorado. Ela trabalha e é vinculada a uma empresa que oferece faxinas. Porém, ela ainda faz faxina para os antigos patrões. Ela diz que atualmente eles pagam a ela corretamente pelos serviços prestados e que ser analfabeta dificulta a busca por emprego.
Quando questionado sobre o motivo de fazer faxina no lugar onde ela diz ter sido humilhada, ela defende que é por necessidade. “Eu não vou lá porque eu gosto de ver eles, eu vou lá para trabalhar, ganhar meu salário, eu sai de lá sem nada. Nem R$ 0,50 no bolso eu não tinha. Eu tinha que me virar. Depois que eu entrei com o processo que ela me chamou de volta”, diz Solange.
Processo
Em uma mala trancada com cadeado Solange guarda parte dos trinta anos que viveu na casa da família. Entre os objetos, estão: sua cartilha, os bonecos de Zezé de Camargo e Luciano, um livro de receitas de uma novela que gostava, seus documentos, a caderneta com seus salários, fotos e um walkman. Todos esses objetos ela recuperou depois que saiu da casa em que morava.
Foi escutando o seu rádio que ela conheceu os advogados Estácio Moraes e Fernando Zanellato que falavam sobre Direito do Trabalho em um programa. Solange já havia passado por três profissionais que não acreditaram em sua história, até encontrar Estácio e Fernando.
Fernando conta que durante o programa Solange começou a mandar diversos áudios para o telefone divulgado, mas, como ele não podia ouvir naquele momento, ele pedia para ela escrever, mas ela continuava a mandar áudios e ligar para ele. Devido a insistência, ele resolveu ouvir a história da mulher.
“Eu pensei ou é grave ou é uma pessoa qualquer inventando, também de outro lado que inventam na sociedade e agendamos com ela aqui no escritório para fazer uma triagem”, conta Zanellato.
Os advogados contam que, em primeira instância, o juiz entendeu que não havia trabalho análogo ao escravo, mas, sim, um trabalho proibido porque Solange era menor de idade durante um período em que realizou o serviço.
Em segunda instância a decisão foi diferente “O Tribunal Regional de São Paulo através de três juízes, após analisarem todas as provas e todos os fatos, se convenceram da existência de um trabalho análogo ao escravo”, diz Estácio Moraes.
O Tribunal fixou um valor de R$ 1 milhão de indenização que será pago em 21 anos. A decisão ainda cabe recurso ao Tribunal Superior do Trabalho. “Nós entendemos que os fatos e as provas não podem ser mais reexaminados o que pode ser discutido é em relação ao valor”, diz Estácio.
O advogado da família, Carlos Eduardo Quintieri, defende que nunca houve relação análoga à escravidão entre Solange e a família. Ele disse que a decisão é “injusta e divorciada da realidade dos fatos”. O advogado disse que a defesa irá recorrer da decisão.